A discussão sobre a transformação do mercado de software com a inteligência artificial ganhou um caminho mais radical com as especulações do CEO da Lambda Labs, Stephen Balaban. Em entrevista ao podcast TBPN, ele traçou um cenário em que, em vez de usar IA para criar software, a própria IA se torna o software. A hipótese desafia a noção tradicional de que os programas continuarão existindo como estruturas de código distintas e interfaces específicas para cada função.
“Muita gente ainda está presa à ideia de que a IA serve para gerar software. Mas a minha tese é outra: você não vai precisar de software algum. A rede neural vai substituir completamente o software”, afirmou Balaban.
Na visão do executivo, o usuário não precisaria mais abrir um editor de planilhas, um aplicativo de vídeo ou uma plataforma de CRM. Bastaria um único ponto de interação — um prompt — para descrever o objetivo desejado, e a IA se encarregaria de realizar as etapas necessárias, integrando as funções de diferentes programas. “A ideia é que, em vez de gerar um programa; digamos, uma calculadora ou uma planilha, você vá até o ChatGPT e diga para fazer os cálculos”, exemplificou.
Essa visão se apoia em uma constatação prática: grande parte do tempo de trabalho digital ainda é desperdiçada procurando menus, comandos e formatos. Pequenos ajustes em arquivos podem consumir horas, e tarefas simples, como mesclar dados, dependem de usuários que dominam as ferramentas a fundo — os chamados “planilheiros”. Copilotos de IA já têm mostrado impacto expressivo ao reduzir esse atrito, permitindo que profissionais concentrem-se no conteúdo e no raciocínio de negócio. Na proposta de Balaban, contudo, o copiloto deixaria de ser um assistente dentro das ferramentas para assumir o próprio papel delas.
Trabalho oculto e reorientação dos “planilheiros”

Uma das abordagens mais pragmáticas para os profissionais que buscam benefícios imediatos com a IA é eliminar ou reduzir o “trabalho oculto” — aquela parte do expediente consumida por tarefas de baixo reconhecimento. Muitas horas do tempo de trabalho são consumidas buscando comandos e, muitas vezes, um pequeno ajuste no arquivo leva horas. O copiloto de IA, nesse contexto, tem alto impacto na produtividade. Outro efeito é aproveitar mais o conhecimento de negócio; todos podem usar de forma avançada as ferramentas digitais mesmo sem as habilidades dos “planilheiros”. Na proposta da Balaban, contudo, em vez de a IA ajudar em uma tarefa pontual, ela executaria as funcionalidades que atualmente passam por múltiplos aplicativos.
Ao eliminar as barreiras das interfaces e o esforço de navegação entre aplicativos, o modelo de Balaban promete ganhos de produtividade e acesso mais amplo ao potencial das ferramentas digitais. Mas também remove camadas de controle que, hoje, funcionam como barreiras de segurança. Quando um sistema impede o salvamento de um arquivo com campos incorretos, ele está, de certa forma, exercendo uma correção. Se a IA executa tudo “mentalmente”, sem uma estrutura de validação visível, o usuário perde o ponto de verificação.
O próprio artigo que divulga a tese de Balaban não detalha como seria o processo de debug ou de “treinamento corretivo” dessa IA. Diante de um resultado incorreto, não há código para revisar — apenas um raciocínio probabilístico a ser reorientado. Trata-se, portanto, de uma mudança de paradigma não apenas na forma de usar tecnologia, mas na maneira de garantir sua confiabilidade.
Além dos desafios conceituais, há os técnicos: emular o comportamento de múltiplos softwares simultaneamente exigiria cargas computacionais imensas. Modelos de linguagem de larga escala, ao processarem instruções complexas em tempo real, consomem energia e capacidade de processamento em proporções ainda difíceis de escalar de forma sustentável.
Tudo sob IA
A facilidade de programar com modelos como o ChatGPT-5 vem afetando a indústria tradicional de software. Entretanto, especialistas ponderam que esses produtos incorporam algo que vai além do código: o conhecimento de processos setoriais, regras fiscais e padrões de negócio.
Ainda assim, é possível imaginar um futuro em que as aplicações deixem de ter front end e se tornem serviços acionados por uma camada de IA que centraliza as interações. Nesse contexto, a IA funcionaria como um sistema operacional conversacional, administrando funções de edição, cálculo, controle financeiro ou design sob demanda. O usuário não abriria “um software”, mas simplesmente descreveria o que deseja fazer.
Se essa transformação se desdobra, pode ir muito além da substituição de uma interface de comandos por uma interface de conversação. O que Balaban propõe é a dissolução da própria estrutura de procedimentos. Surge então uma questão essencial: é possível, e desejável, que quem define os objetivos não precise mais estruturar a sequência de passos para atingi-los? Esse questionamento acaba trazendo ao mundo do trabalho debates que já são intensos no setor de Educação.
As provocações do especialista fazem com que as mudanças no que conhecemos como “software” sejam um vetor de amplas discussões sobre cognição, processos produtivos e o futuro do trabalho.
De um lado, a simplificação promete democratizar o uso das tecnologias e reduzir as ineficiências da interação homem-máquina. De outro, desafia noções consolidadas de responsabilidade, rastreabilidade e verificação, pilares que sustentam tanto o desenvolvimento de software quanto a confiança nas operações digitais.
A trajetória da IA provavelmente vai reconfigurar o ecossistema de software, mas talvez o futuro mais promissor não seja aquele em que a IA substitui os programas, e sim aquele em que aprende a coexistir com eles, transformando a experiência digital sem eliminar os mecanismos que ainda garantem sua segurança e coerência.
