A hiperconectividade, e seus desdobramentos na economia figital, tornou-se uma das maiores fontes de vantagem competitiva e um dos principais vetores de risco sistêmico. Como uma superação das formas lineares, e insuficientes, de responder às transformações, o cientista-chefe da TDS.company e professor da UFPE e FGV, Sílvio Meira, propõe mudanças radicais nas abordagens de análise, estratégia e eficiência. “Passamos a viver numa combinação de caos e complexidade, com sistemas altamente interconectados, interdependentes, e contradições”, diz o pesquisador em entrevista ao podcast Próximo Nível.
Entre as várias inquietações discutidas no podcast, Meira explica como, em um cenário marcado por instabilidade e correlações ampliadas, os conceitos de controle e gestão precisam ser reformulados.
Nos ambientes atuais, o valor das organizações migra do controle vertical para a orquestração: integrações que conectam fornecedores, parceiros, módulos de software, serviços financeiros, infraestruturas de cloud, sensores, dados e algoritmos. A vantagem competitiva deixa de estar no que a organização possui e passa a residir no que ela consegue combinar, recombinar e integrar.
Atualmente, apenas um grupo muito restrito de corporações ainda opera sob um modelo de autossuficiência, baseado na propriedade integral de ativos como frotas, forças de vendas ou datacenters próprios. Mesmo essas organizações vêm, gradualmente, substituindo investimentos fixos de capital (Capex) por custos operacionais variáveis (Opex), ao contratar transportadoras, adotar serviços em nuvem e se apoiar em canais de distribuição parceiros. A disrupção mais profunda, no entanto, não ocorre apenas nessa substituição financeira, mas quando se passa a olhar de forma crítica e criativa para as possibilidades de reorganização das cadeias de valor. Antes do surgimento dos aplicativos de transporte, por exemplo, tecnologias como GPS, pagamentos digitais e conectividade móvel já estavam disponíveis. O que mudou não foi a tecnologia em si, mas a forma como esses elementos foram combinados e orquestrados. Esse mesmo princípio permite o surgimento de produtos e modelos inaugurais sem a necessidade de inventar tecnologias ou adquirir ativos centrais, reduzindo barreiras de entrada e viabilizando a atuação de startups, muitas vezes capazes de desestabilizar mercados tradicionais consolidados.
À medida que as organizações passam a depender de plataformas, serviços de terceiros, cadeias logísticas globais, provedores de tecnologia, APIs e integrações contínuas, cada elo da rede deixa de ser apenas suporte e se converte em elemento decisivo para a resiliência — ou para o colapso. “A figitalização não se resume à digitalização de processos físicos. Ela pressupõe uma transformação estrutural da forma como os sistemas são concebidos, operados e governados”, afirma Sílvio Meira no artigo Ruptura sistêmica e inteligência estratégica – a emergência dos cisnes vermelhos.
Interdependência como vetor de fragilidade

Meira argumenta que, em modelos figitais, sistemas passam a operar como plataformas abertas e modulares, um rearranjo que produz novas capacidades de resposta, mas também expõe fragilidades que se propagam em escala. O risco deixa de ser contido em um domínio específico e passa a circular pelas conexões.
Essa condição é reforçada pela dificuldade crescente de antecipar impactos. “Ficou cada vez mais difícil você identificar o que eu estou fazendo agora e que consequências isso tem”, observa o pesquisador no podcast. Em ambientes hiperconectados, decisões aparentemente locais podem desencadear reações em cadeia, muitas vezes irreversíveis.
A capacidade de resposta estratégica passa a depender diretamente da diversidade e da qualidade das relações com redes de parceiros. A facilidade de manobrar alternativas de suprimentos, rotas, condições comerciais ou arquiteturas tecnológicas define o grau de resiliência diante de incertezas e rupturas.
A interdependência acelera a inovação, mas expande a fragilidade estrutural. Sistemas conectados permitem operações distribuídas, monitoramento contínuo e recombinação rápida de capacidades. Quando estruturados de forma rígida, contudo, tornam-se vulneráveis à propagação de falhas. “Plataformas monolíticas ou rigidamente acopladas, desenhadas para estabilidade e previsibilidade, tornam-se não apenas inadequadas, mas passivos perigosos”, adverte Meira no artigo.
A modularidade como resposta estrutural
A transição das aplicações monolíticas para arquiteturas de microsserviços, com módulos autônomos e substituíveis, tornou-se um paradigma da engenharia de software que ajuda a compreender caminhos possíveis para a resiliência sistêmica. A lógica de segmentar funcionalidades permite isolar falhas e acelerar processos de recomposição.
Esse princípio se aplica a outros domínios: infraestruturas energéticas capazes de desligar trechos sem colapsar a rede inteira; cadeias produtivas que conseguem trocar fornecedores sem reiniciar operações; ecossistemas urbanos baseados em sensores independentes; ou sistemas financeiros desenhados para interoperabilidade e redundância. A modularidade, nesse contexto, não é apenas um facilitador técnico, mas um princípio de design voltado à redução de riscos sistêmicos.
Governança em cadeias hiperconectadas: diversidade como estratégia
À medida que o valor passa a residir na orquestração, a governança precisa se adaptar para lidar com vulnerabilidades distribuídas. Múltiplos fornecedores, alternativas logísticas, redundâncias inteligentes e a possibilidade real de substituição de módulos ou parceiros reduzem a probabilidade de que uma falha específica se converta em colapso sistêmico.
“Nesse novo arranjo, os sistemas tornam-se hiperconectados, modulares, e passam a operar como plataformas abertas. Essas três propriedades são simultaneamente fontes de complexidade sistêmica e potenciais dispositivos de mitigação de riscos radicais”, afirma Meira.
“Navegar esse mundo da contradição requer tecnologia, requer infraestrutura, mas principalmente requer pessoas curiosas”, comenta o diretor de inovação da Claro empresas, Rodrigo Duclos, em uma participação no podcast. Ele enfatizou que, nesse cenário, a competitividade passa a depender da colaboração entre organizações. “Todo mundo precisa aprender a fazer inovação aberta, que é cocriar, usar os meus dados, os meus algoritmos em conjunto com os meus parceiros e criar coisas únicas, diferenciais”, diz.
Arquiteturas para cenários de cisne vermelho
Apesar dos desafios de mudanças, sistemas hiperconectados podem se recompor rapidamente, desde que concebidos com diversidade, modularidade e governança distribuída. A inteligência estratégica, nesse contexto, não busca impedir rupturas, algo inviável nos tempos pós-normais, mas limitar seus efeitos e acelerar processos de reorganização.
Arquiteturas rígidas fazem tensões inevitáveis se desdobrarem em colapsos. Arquiteturas abertas, flexíveis e modulares permitem absorver choques, redistribuir funções e transformar rupturas em evolução.
A força das redes hiperconectadas não está na eliminação da fragilidade, mas na capacidade de recomposição contínua diante de um ambiente em que cisnes vermelhos deixam de ser exceção e passam a integrar a dinâmica normal dos sistemas.
