Para atender a uma população com déficit de serviços públicos e democratizar a relação entre Estado e cidadão, a implementação de IA no setor público é uma alternativa promissora. “Num país como o Brasil, com dimensões continentais, e em que ainda existem muitos problemas sociais a serem sanados, a IA implantada para auxiliar políticas públicas traz um ganho imediato à população”, constata André Beck, sócio da WideLabs, em entrevista ao portal Telessíntese. A empresa é desenvolvedora do Amazônia IA, um modelo de linguagem (LLM) criado no Brasil, nativo em português e treinado com dados culturais e técnicos do país. “O Brasil não pode perder o rumo da história e deixar de ser protagonista no que diz respeito à implantação de IA”, afirma. Ele defende que o setor público utilize exclusivamente IA nacional.
A aplicação no poder público é um dos nove eixos temáticos da Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial (EBIA), com direcionamento à melhoria dos serviços e eficiência na gestão.
O documento da EBIA destaca que muitos países já possuem estratégias específicas para a transformação do setor público com IA, com foco em colaboração público-privada, automação de processos rotineiros e gestão estratégica de dados governamentais. Na descrição da política pública, diversas implementações são sinalizadas como referência.
No âmbito federal, o Tribunal de Contas da União (TCU) usa robôs como a “Alice” para analisar licitações e editais, a “Sofia” para auxiliar auditores e a “Mônica” para monitorar compras públicas. O Supremo Tribunal Federal (STF) usa a ferramenta “Victor” para classificar recursos extraordinários, enquanto o Tribunal Superior do Trabalho (TST) emprega o “Bem-Te-Vi” para gerenciar processos judiciais.
No âmbito estadual, a plataforma “PIÁ”, do Paraná, reúne mais de 380 serviços governamentais em um só lugar. Em Pernambuco, o sistema “Elis”, do Tribunal de Justiça, agilizou a tramitação de processos, reduzindo drasticamente o tempo de trabalho.
A reportagem do Telessíntese menciona outra iniciativa desenvolvida no Brasil, a plataforma Genius da consultoria de tecnologia Squadra, que utiliza IA para acelerar o desenvolvimento e a modernização de sistemas legados. Por diversos motivos, setores como Finanças e Governo possuem um grande ativo em dados e funcionalidades em sistemas com arquiteturas antigas, e esse valor pode ser revitalizado e convertido em benefícios para instituições e cidadãos. O produto teve investimento de R$ 20 milhões e apoio do BNDES.
Desafios e considerações éticas
A aplicação da IA em segurança pública é um dos temas de maior destaque na EBIA, que aponta para a existência de pelo menos 75 países utilizando a tecnologia para vigilância. As aplicações incluem sistemas de reconhecimento facial, plataformas de cidades inteligentes (smart cities) e análise de áudio para detectar ocorrências em tempo real.
Entretanto, o documento destaca preocupações éticas e os riscos associados, principalmente ao viés algorítmico. Erros em sistemas de reconhecimento facial podem levar a constrangimentos e prisões arbitrárias, e estudos demonstram que as taxas de falsos positivos são significativamente maiores em pessoas de traços africanos e asiáticos do que em caucasianos. Uma investigação do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESEC) revelou que, em casos de detenções por reconhecimento facial em quatro estados brasileiros, 90,5% das pessoas presas eram negras.
O documento da EBIA ressalta que vieses são, em muitos casos, causados por conjuntos de dados de treinamento com composição demográfica desproporcional, o que aumenta a acurácia para grupos majoritários. A EBIA enfatiza que o uso de IA em segurança pública deve respeitar os direitos constitucionais de privacidade e proteção de dados pessoais.
Para garantir um uso responsável, a EBIA propõe ações como a criação de mecanismos de supervisão para monitorar o uso da IA, a elaboração de Relatórios de Impacto de Proteção de Dados (RIPD) e a implementação de “sandboxes regulatórios” para testar tecnologias sob supervisão do Estado. O texto sugere também a necessidade de uma lei específica sobre proteção de dados em segurança pública, alinhada aos princípios da LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados).