A América Latina passa por uma digitalização profunda, com a convergência de tecnologia, capital e regulamentação. Nessa jornada, o Brasil ganha destaque, segundo o relatório Latin America Digital Transformation, publicado pelo fundo de investimentos Atlântico.
Na avaliação dos responsáveis pelo documento, a combinação histórica de burocracia e informalidade da região está diminuindo, especialmente com a adoção maciça da Inteligência Artificial (IA) e com a transformação dos serviços financeiros. O Brasil, com o sucesso do Pix e do open finance, tem lugar especial como uma espécie de motor da transformação digital.
Entre os exemplos da singularidade brasileira está o fato de que quatro em cada cinco adultos no país possuem identidade digital verificável, o que desbloqueia o acesso a programas públicos e serviços privados. A plataforma universal de ID digital (gov.br), já abrange 82% dos brasileiros e está a caminho de uma cobertura universal até 2027, transformando a identidade em uma utilidade pública.
Desde seu lançamento, o gov.br já processou 2,1 bilhões de consultas automatizadas, gerando uma economia projetada de R$ 9,7 bilhões para o setor público, no período de 2020 até o primeiro semestre de 2025. O roteiro atual do gov.br prevê o compartilhamento de dados em tempo real com bancos e fintechs, mediante consentimento do cidadão.

Detalhe: os cartórios de registro e de notas, legalmente obrigatórios no Brasil, tornaram-se um mercado de US$ 6 bilhões. Isso acontece porque são eles que gerenciam serviços essenciais de identidade, registro e autenticação.
O Brasil demonstra ainda uma adoção de IA notavelmente rápida. O uso do ChatGPT no país está entre os mais altos do mundo, com uma penetração de 20% da população, igualando a dos EUA e ficando entre as três maiores globalmente (54 milhões de usuários móveis). Quatro em cada dez brasileiros se declararam “muito familiarizados” com o termo “Inteligência Artificial”. Além disso, o uso semanal de ferramentas de IA é alto, com 48% dos entrevistados utilizando-as alguns dias ou em todos na semana anterior.
O uso pessoal de IA no Brasil é liderado pela aprendizagem de novos termos, suporte em tarefas de trabalho e busca de informações.
Pix é marco global

Empresas brasileiras, como a fintech Cloudwalk, utilizam IA para estabelecer padrões de produtividade diferenciados, como prevenir mais de R$ 15 bilhões em fraudes em 2024 e resolver automaticamente 75% dos tíquetes de suporte.
A Enter, outra companhia local, utiliza IA para produzir respostas jurídicas personalizadas em segundos, já respondendo por 14% das ações judiciais dos dez principais litigantes do setor privado no Brasil.
O Brasil tem sido bem-sucedido também em capitalizar a redução de atritos na regulamentação de serviços financeiros. É o caso do Pix, que continua a crescer, com um aumento de 30% no número de transações trimestrais, atingindo quase 20 bilhões. A ferramenta é considerada um marco global, superando a UPI, sistema de pagamento instantâneo da Índia, em volume, uso per capita e crescimento. O uso do Pix por empresas (B2B e P2B) está em ascensão.
Na área de open finance, o Brasil se estabeleceu como um ator global, com um terço da população consentindo compartilhar dados. A adoção impulsionou uma redução de 74% nas taxas de inadimplência entre os aderentes e uma aprovação de crédito 30% mais rápida.
Outro ponto positivo foi a regulamentação (Resolução 4.480/2017) que permitiu a abertura de contas totalmente digitais, levando a uma queda de aproximadamente 25% no número de agências bancárias entre 2018 e 2024. As regulamentações ajudaram a reduzir a taxa de desconto do comerciante (MDR). Ao mesmo tempo, o número de fintechs de crédito aumentou de 11 (2019) para 130 (2024). Já a participação de bancos digitais no crédito total subiu de 1,9% para 4,6%, entre 2019 e 2022.
Capital humano e financeiro
Parte fundamental do processo, a presença de profissionais especializados é um destaque do Brasil, que ocupa o 4º lugar mundial em número de desenvolvedores de software no GitHub, com mais de 5,8 milhões. E mais: o país registrou um crescimento de 38% em 2024.
Apesar disso, o país enfrenta um déficit de talentos em tecnologia. O relatório do Atlântico indica que áreas como ciência da computação e engenharias correlatas representam apenas 1,8% dos estudantes de graduação, com uma taxa de evasão de 53%.
Um caso interessante é o da plataforma brasileira Start Carreiras, que está desenvolvendo uma rede de talentos que utiliza IA para atender às necessidades de contratação futuras, como a demanda por especialistas em rotulagem de dados para projetos de IA.
Ainda a favor do país é sua estrutura de venture capital, com o país detendo a maior parte do financiamento desse tipo na América Latina. O volume de dry powder (capital comprometido, mas não investido) no Brasil atingiu níveis recordes, chegando a US$ 3,4 bilhões em 2024.
Hub de data centers
Outra fronteira de oportunidades é o sistema de saúde, uma vez que 43% dos brasileiros avaliaram a situação da saúde no país como ruim ou muito ruim. O tempo médio de espera por cirurgia aumentou 84% desde 2020, atingindo 380 dias em 2024.

Essas deficiências abrem espaço para a digitalização, com exemplos como o da Fin-X, que digitaliza os processos operacionais e financeiros de cirurgias no Brasil, o que pode reduzir o tempo de autorização em até 50% e os cancelamentos em 43%. A Genial Care, outra empresa da área, tem redefinido o tratamento do autismo no Brasil, onde há uma escassez profunda de profissionais qualificados.
O Brasil é ainda um local estratégico para novos data centers devido à sua energia abundante e renovável, interconexão global e governança estabelecida. A iniciativa Redata, do governo federal, que inclui a isenção de impostos para compra de tecnologia para data centers, deve ser um dos impulsionadores nesse segmento. A criação de um hub de data centers no país reforçaria um círculo virtuoso, uma vez que a IA é um dos grandes vetores de consumo de processamento de dados.
